segunda-feira, 29 de abril de 2019

RESENHA DE LIVRO – O COMPROMISSO


Um texto quando parece sofisticado demais, muitas vezes deixa-nos com a sensação de que foi escrito por algum esnobe interessado apenas em receber meia dúzia de elogios por saber compor algo difícil de ser compreendido. Esse estilo pedante de linguagem por vezes não passa de literatura irrelevante e esquecível, disfarçada de erudição. E na contramão disso, é maravilhoso quando encontramos um livro que destila uma linguagem que simplesmente quer relatar algo, e que o faz de modo natural, direto... Tão direto que a crueza de seu conteúdo é o viés de seu encanto.

O COMPROMISSO é exatamente isso: uma belíssima aula de narrativa da vida em que você entende cada parágrafo, relatos diretos e imparciais de alguém que meramente quer contar sobre o cotidiano. É precisamente desse modo orgânico que transcorre a leitura de Herta Muller. O acaso nos faz sentar ao lado de uma mulher dentro de um bonde. De modo despretensioso, ela se vira e começa a contar seus relatos como se fosse meramente uma existência acumulada que precisa verbalizar; que precisa externalizar o que paira em sua mente, naquele exato instante em que suas memórias flutuam. Não importa quem é o ouvinte (leitor) que está ao lado dela. Então, essa mulher resiliente revela os pedaços de sua trajetória constrangedora sem pedir licença, sem clamar por sua opinião, sem explicar o que sente.

Após suas confissões espontâneas, essa mulher se levanta do lugar em que estava, despede-se e vai embora, deixando você inteiramente atônito e boquiaberto. Sobram-se apenas ouvinte (leitor) com sua frágil estrutura existencial completamente abalada por aqueles relatos; o ouvinte (leitor) compreende que inevitavelmente passará dias pensando sobre tudo aquilo que ouviu, justamente porque o imaterial era quase palpável.

A mulher em questão está justamente indo para O COMPROMISSO. Desse modo, ela toma o bonde outra vez, para mais um interrogatório humilhante às autoridades do regime ditatorial que perdura em seu país, sem saber se volta pra casa ou não; se será finalmente presa e torturada; sem saber como fará para esconder o ódio de seu algoz. Ela cometeu ato impensado de colocar bilhetes nos ternos da fábrica onde trabalhava, oferecendo-se em casamento para alguém que a livrasse da tirania opressora do Estado.

No entanto, mesmo diante da extraordinária e bela narrativa, O COMPROMISSO não é um livro para qualquer leitor. A história não transcorre linear, aqui não existe a preocupação em colóquios objetivos, mas sim, reflexões ásperas, linguagem direta e sóbria... Não há tempo para arrependimentos ou concessões.

A trama vai pra frente e pra trás o tempo todo, pode até causar certa confusão na imersão do leitor. Mas o intuito aqui passa muito longe de conclusões ou respostas; estamos diante de uma vida que aconteceu tanto, que ao término do relato, ficaremos com a sensação de que fomos preenchidos, não pela linearidade começo, meio e fim, mas justamente pela maneira com que o mundo te colocou no caminho dessa mulher e inevitavelmente você se saciou com sua história.

A leitura causa impacto, a continuidade de um choque após outro nos deixa apreensivos, a narração harmoniosamente simples, como quando ela examina os outros passageiros dentro do bonde que observa...

Texto legítimo é texto fácil de entender. Herta Muller transborda delicadeza, dá um show de literatura com seu livro, que de tão cândido, revela-se altamente resplandecente.

NOTA: 9

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