De todas as minhas manias de
leitor, uma delas sustento um carinho especial: quando aprecio a leitura, acabo
por desacelerar naturalmente. Não sei se por medo do término do prazer ou por
introspecção. O fato é que o livro que encanta é sempre degustado lentamente
por este leitor que vos escreve. E a obra aqui resenhada esteve diariamente
comigo ao longo das últimas três semanas, numa leitura vagarosa e cheia de
pausas para reflexões.
Cada vez mais apaixonado pela literatura portuguesa, conheci o trabalho de Dulce Maria Cardoso através de sua primeira obra CAMPO DE SANGUE (tem resenha aqui no blog). Comecei um pouco desconfiado, tive dificuldades para me familiarizar com expressões linguísticas usadas em Portugal, enfim, precisei de algumas páginas para descobrir essa peculiar escritora. Mas a cada página virada eu desacelerava, desacelerava... Até quase parar, tão deliciosa que foi a experiência.
OS
MEUS SENTIMENTOS é a obra cujo conteúdo replica todo o
brilhantismo narrativo que Dulce Maria já havia destilado em sua estreia. Este
trabalho se eleva um pouco mais pela extensão, por explorar com maior
profundidade a consciência da personagem que nos conta sua história, e o faz de
ponta cabeça, o corpo avantajado preso ao cinto de segurança, enquanto ela
observa os cacos que restaram do para-brisa e uma gota de chuva que se recusa a
desprender da ponta do vidro. O impacto chocante foi o gatilho que submeteu
pensamentos a serem revistos de forma diligente, porém, sem mascarar os
excessos ou omitir as percepções adquiridas ao longo da vida da personagem, até
chegar ali... No ponto crucial da fatalidade que despertou a autoanálise.
As lembranças da protagonista
narradora vão moldando sua existência e iluminam lugares pouco explorados de
seu interior; existência que fora drasticamente interrompida naquele tempo
presente, cruel e imprevisto. Há instantes em que o cinismo descrito se mistura
com a autopiedade, o que eleva as inconstâncias, mas sempre sobressaindo algo
próximo a desesperança e o sentimento de inadequação da mulher chamada Violeta.
Coberta por um véu de
sarcasmo que nem sempre soa proposital, a personagem replica as definições que as
experiências, nem sempre evolutivas que viveu com outros seres humanos, lhe
deram de forma quase impertinente, como se as vozes vociferantes não mais
interferissem em sua estrutura. Desse modo, a mulher que tem nome de flor e que
também é uma cor, a monstrenga, a aberração, vai externando seus pensamentos e
lembranças, com uma crueza tão ímpar capaz de causar diferentes sentimentos no
leitor.
Violeta não nos deixa
respirar; incita o tempo inteiro uma aproximação, mostra seu incômodo que logo
se transformará em nosso incomodo. Emoções como ódio se tornam palpáveis. E a
partir desse instante, estamos presos a pensamentos até então impensados; travessias
por fronteiras desconhecidas; submersos nessa hecatombe de consciência, o
destino do leitor parece misturar-se ao da narradora... Um misto de lirismo e
crueza, que por inserir-nos, exclui qualquer possibilidade de julgamento.
Trata-se de uma exegese cuja
discrepância pode ser percebida como fundamento; é delicada e vigorosa, sutil e
abundante, doce e azeda... Tão variável como somente pode ser a alma do ser
humano. Portanto, eu fico a me perguntar se era Dulce Maria Cardoso a externar sua própria alma, ou se eram almas
que usaram a autora para exprimir suas fragilidades e imprecisões... Se é que
temos alma de fato.
Vale observar que essa
autora não possui um estilo simples e que agrade a diferentes tipos de leitores.
Talvez desagrade aos que apreciam fluidez narrativa ou climas instigantes que prenda
a leitura por meio da expectativa. Essencialmente temos a imersão sem direção
específica, que esmiúça muito os detalhes para fazer refletir.
Através de sua literatura, Dulce Maria Cardoso nos retira de zonas
sombrias e escuras, onde nós pouco vemos e quase nada sentimos. Então, a autora
nos remete a uma elevação perceptiva que somente a literatura é capaz de
oferecer. Imbuídos dessa percepção, enxergamos o impossível: riscos ocasionais,
objetos camuflados, gestos involuntários, coisas perdidas, sensações escapadiças.
As obras dessa portuguesa genial desarranja nossa medíocre convicção; passamos
daquele ponto crítico no qual a maior parte da cegueira coletiva se encerra,
como se o universo fosse feito de margens alcançáveis. Então Dulce nos faz
mergulhar mais profundo, porque depois de um abismo sabe-se que haverá outro, e
mais outro... Sua literatura é uma viagem sem lugar seguro, então você
despenca.
E como eu despenquei!
OS
MEUS SENTIMENTOS foi o livro que deixei para ler no final
desse ano, porque era a obra que mais desejava ler. Sim, eis outra mania de
leitor que costumo me permitir: deixar o melhor para o final, como quando se
deixa a carne no prato para ser degustada no finzinho. Prolongar a expectativa
é um gostoso jeito de esperar pelo melhor livro. Nem sempre dá certo, vez ou
outra a espera se torna maior do que a própria leitura. Felizmente esse não foi
o caso, e termino 2020 embevecido de prazer, entorpecido pela beleza trágica de
Dulce Maria, que sabe como arrancar camadas de seus personagens de modo a nos
mostrar as vísceras que, a cada pedaço tirado se apresenta ainda mais
imprecisa, imperfeita, e por isso mesmo, amplamente humana.