quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

RESENHA DE LIVRO – OS MEUS SENTIMENTOS


De todas as minhas manias de leitor, uma delas sustento um carinho especial: quando aprecio a leitura, acabo por desacelerar naturalmente. Não sei se por medo do término do prazer ou por introspecção. O fato é que o livro que encanta é sempre degustado lentamente por este leitor que vos escreve. E a obra aqui resenhada esteve diariamente comigo ao longo das últimas três semanas, numa leitura vagarosa e cheia de pausas para reflexões.

Cada vez mais apaixonado pela literatura portuguesa, conheci o trabalho de Dulce Maria Cardoso através de sua primeira obra CAMPO DE SANGUE (tem resenha aqui no blog). Comecei um pouco desconfiado, tive dificuldades para me familiarizar com expressões linguísticas usadas em Portugal, enfim, precisei de algumas páginas para descobrir essa peculiar escritora. Mas a cada página virada eu desacelerava, desacelerava... Até quase parar, tão deliciosa que foi a experiência.

OS MEUS SENTIMENTOS é a obra cujo conteúdo replica todo o brilhantismo narrativo que Dulce Maria já havia destilado em sua estreia. Este trabalho se eleva um pouco mais pela extensão, por explorar com maior profundidade a consciência da personagem que nos conta sua história, e o faz de ponta cabeça, o corpo avantajado preso ao cinto de segurança, enquanto ela observa os cacos que restaram do para-brisa e uma gota de chuva que se recusa a desprender da ponta do vidro. O impacto chocante foi o gatilho que submeteu pensamentos a serem revistos de forma diligente, porém, sem mascarar os excessos ou omitir as percepções adquiridas ao longo da vida da personagem, até chegar ali... No ponto crucial da fatalidade que despertou a autoanálise.

As lembranças da protagonista narradora vão moldando sua existência e iluminam lugares pouco explorados de seu interior; existência que fora drasticamente interrompida naquele tempo presente, cruel e imprevisto. Há instantes em que o cinismo descrito se mistura com a autopiedade, o que eleva as inconstâncias, mas sempre sobressaindo algo próximo a desesperança e o sentimento de inadequação da mulher chamada Violeta.

Coberta por um véu de sarcasmo que nem sempre soa proposital, a personagem replica as definições que as experiências, nem sempre evolutivas que viveu com outros seres humanos, lhe deram de forma quase impertinente, como se as vozes vociferantes não mais interferissem em sua estrutura. Desse modo, a mulher que tem nome de flor e que também é uma cor, a monstrenga, a aberração, vai externando seus pensamentos e lembranças, com uma crueza tão ímpar capaz de causar diferentes sentimentos no leitor.

Violeta não nos deixa respirar; incita o tempo inteiro uma aproximação, mostra seu incômodo que logo se transformará em nosso incomodo. Emoções como ódio se tornam palpáveis. E a partir desse instante, estamos presos a pensamentos até então impensados; travessias por fronteiras desconhecidas; submersos nessa hecatombe de consciência, o destino do leitor parece misturar-se ao da narradora... Um misto de lirismo e crueza, que por inserir-nos, exclui qualquer possibilidade de julgamento.

Trata-se de uma exegese cuja discrepância pode ser percebida como fundamento; é delicada e vigorosa, sutil e abundante, doce e azeda... Tão variável como somente pode ser a alma do ser humano. Portanto, eu fico a me perguntar se era Dulce Maria Cardoso a externar sua própria alma, ou se eram almas que usaram a autora para exprimir suas fragilidades e imprecisões... Se é que temos alma de fato.

Vale observar que essa autora não possui um estilo simples e que agrade a diferentes tipos de leitores. Talvez desagrade aos que apreciam fluidez narrativa ou climas instigantes que prenda a leitura por meio da expectativa. Essencialmente temos a imersão sem direção específica, que esmiúça muito os detalhes para fazer refletir.

Através de sua literatura, Dulce Maria Cardoso nos retira de zonas sombrias e escuras, onde nós pouco vemos e quase nada sentimos. Então, a autora nos remete a uma elevação perceptiva que somente a literatura é capaz de oferecer. Imbuídos dessa percepção, enxergamos o impossível: riscos ocasionais, objetos camuflados, gestos involuntários, coisas perdidas, sensações escapadiças. As obras dessa portuguesa genial desarranja nossa medíocre convicção; passamos daquele ponto crítico no qual a maior parte da cegueira coletiva se encerra, como se o universo fosse feito de margens alcançáveis. Então Dulce nos faz mergulhar mais profundo, porque depois de um abismo sabe-se que haverá outro, e mais outro... Sua literatura é uma viagem sem lugar seguro, então você despenca.

E como eu despenquei!

OS MEUS SENTIMENTOS foi o livro que deixei para ler no final desse ano, porque era a obra que mais desejava ler. Sim, eis outra mania de leitor que costumo me permitir: deixar o melhor para o final, como quando se deixa a carne no prato para ser degustada no finzinho. Prolongar a expectativa é um gostoso jeito de esperar pelo melhor livro. Nem sempre dá certo, vez ou outra a espera se torna maior do que a própria leitura. Felizmente esse não foi o caso, e termino 2020 embevecido de prazer, entorpecido pela beleza trágica de Dulce Maria, que sabe como arrancar camadas de seus personagens de modo a nos mostrar as vísceras que, a cada pedaço tirado se apresenta ainda mais imprecisa, imperfeita, e por isso mesmo, amplamente humana.

2020 foi um ano de boas leituras, ótimas descobertas, alguns livros nem tão bons assim, mas no geral, tive mais prazer do que enfado. Oportuno momento esse, cujo isolamento da pandemia serviu para incrementar os horários de leitura. Quero agora desenvolver um novo habito de leitor apaixonado: o de revisitar os livros amados, talvez um desafio menos simples de ser alcançados, pois diante desse universo tão vasto que é a literatura, quase não sobra tempo para releituras... Porém eu sei que, cedo ou tarde, acabo retornando aos grandes mestres, para reler ou para descobrir mais de suas obras. E Dulce Maria Cardoso está indiscutivelmente inserida neste seleto grupo.

NOTA: *10*

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