“Dentro de nós há uma coisa que não tem nome, essa coisa é o que somos”.
(Pag.
262)
A primeira vez que li este
livro eu ainda não tinha cabelos brancos e meu porte magricela ainda se
encontrava bem longe dos três dígitos na balança, lugar no qual ainda não
cheguei, mas estou bem perto. Naquele tempo, eu estava tentando me aventurar
por grandes autores, a maior parte dos que me propunha, eu terminava um pouco
frustrado por conta da óbvia escassez de familiaridade com alguns estilos,
cujas linguagens ainda custaria a dominar. Porém, aquele tempo também foi
marcado pela imensa vontade de conhecer literatura e a obstinação por desbravar
novos autores. Foi lá, naquele tempo de leitor iniciante, que resolvi dar
chance a um tal senhorzinho português bastante elogiado no universo literário.
Tanto, que ele até já tinha ganhado um prêmio Nobel de Literatura. Aliás, até o
momento desta resenha, Jose Saramago
é o único autor da língua portuguesa a ser contemplado pela maior honraria no
campo da literatura.
Talvez ENSAIO SOBRE A
CEGUEIRA seja o livro mais conhecido de Saramago aqui no Brasil, a obra já
virou película cinematográfica e, em conversas com amantes de livros sobre o
autor, este é sempre o primeiro a ser lembrado quando citamos o seu nome.
Bem, eu quis fazer esta
releitura, porque em minha primeira incursão, tive dificuldade em me acostumar
ao estilo prolixo e a desordem de pontuação de Jose Saramago. Não
abandonei a leitura, mas naquele tempo, considerei o livro cansativo e
enfadonho. Contudo, os anos só alimentaram o anseio pela releitura,
principalmente porque minhas incursões posteriores ao universo de Saramago
mostraram que, na verdade, o problema não estava no escritor, mas na
precariedade deste leitor que vos escreve.
Esta distopia de José Saramago nos remete à uma
sociedade vitimada por uma pandemia de cegueira aterradora e comovente, na qual
o leitor será transportado para uma experiência imaginativa única, onde a
literatura cruel e sábia nos obriga a parar, fechar os olhos e ver..., com o
perdão da ironia.
Na trama não teremos um arco
principal, propriamente, embora o desenvolvimento narrativo careça muito de uma
personagem que misteriosamente não perdeu a visão, optando em acompanhar o
marido cego, quando este é encaminhado para uma espécie de “campo de
concentração” para os primeiros infectados, pois o governo, não sabendo lidar
com a doença e sua transmissão, resolve confinar infectados, numa tentativa de
isolar o contágio.
Logo a medida se mostra um
fracasso e o mundo parece ter-se tomado pela “cegueira branca”, como
previamente é chamada a doença. Ocorre então uma mudança de perspectiva; onde
antes havia um grupo de cegos confinados, aguardando explicações científicas e
cuidados por parte daqueles que ainda podiam ver, transformou-se num ambiente
caótico, desprezível e miserável, onde o instinto de sobrevivência e avidez
pela saciedade de necessidades básicas, faz com que seres humanos revelem
comportamentos primitivos, como egoísmo, indiferença e truculência.
A catástrofe de Saramago expõe
a vulnerabilidade do ser humano, na sua extrema dependência dos olhos,
inclusive para realização de suas necessidades mais básicas, mas também uma
gradativa animalização conforme o tempo de infecção avança, tornando as necessidades
do corpo algo insuportável, beirando a loucura.
O cenário caótico muitas vezes
nos faz interromper a leitura. A podridão, tanto no aspecto ambiental quanto
comportamental dos cegos, por várias vezes nos deixa com asco. O autor faz uso
do olhar da única personagem que ainda pode ver, embora não se trate de uma
narrativa em primeira pessoa, ela é o arco central do desconforto, pois
vivencia na pele aquela hecatombe, como se representasse o próprio leitor
dentro desse universo mórbido. A personagem que vê, possui uma percepção
despida de julgamento moral diante dos cegos com os quais convive; ela é o peso
da sensibilidade que atiça o olhar do leitor para a miséria existencial daquele
mundo.
Alguns críticos literários apontam esta obra para uma possível metáfora da cegueira moral do ser humano, cujos olhos turvos já não podem ver mais a brutalidade ao redor; o autor escancara nossa animalidade primitiva de crueldade, mas parece fazer um paralelo à possibilidade de já estarmos vivenciando essa cegueira coletiva em relação à maldade do mundo, mesmo nos dias de hoje, onde uma pandemia ainda não nos cegou literalmente.
ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA foi uma necessária releitura, de outro universo saramaguiano em que o ser humano é desnudado em seus mais asquerosos anseios, mas sempre sob a perspectiva de um contraponto, no caso aqui representado pela personagem que pode ver, de que o ser humano ainda não é uma causa perdida.
NOTA: 8,5
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