domingo, 27 de outubro de 2024

RESENHA DE LIVRO – ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA

 Dentro de nós há uma coisa que não tem nome, essa coisa é o que somos”.

(Pag. 262)

 

A primeira vez que li este livro eu ainda não tinha cabelos brancos e meu porte magricela ainda se encontrava bem longe dos três dígitos na balança, lugar no qual ainda não cheguei, mas estou bem perto. Naquele tempo, eu estava tentando me aventurar por grandes autores, a maior parte dos que me propunha, eu terminava um pouco frustrado por conta da óbvia escassez de familiaridade com alguns estilos, cujas linguagens ainda custaria a dominar. Porém, aquele tempo também foi marcado pela imensa vontade de conhecer literatura e a obstinação por desbravar novos autores. Foi lá, naquele tempo de leitor iniciante, que resolvi dar chance a um tal senhorzinho português bastante elogiado no universo literário. Tanto, que ele até já tinha ganhado um prêmio Nobel de Literatura. Aliás, até o momento desta resenha, Jose Saramago é o único autor da língua portuguesa a ser contemplado pela maior honraria no campo da literatura.

Talvez ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA seja o livro mais conhecido de Saramago aqui no Brasil, a obra já virou película cinematográfica e, em conversas com amantes de livros sobre o autor, este é sempre o primeiro a ser lembrado quando citamos o seu nome.

Bem, eu quis fazer esta releitura, porque em minha primeira incursão, tive dificuldade em me acostumar ao estilo prolixo e a desordem de pontuação de Jose Saramago. Não abandonei a leitura, mas naquele tempo, considerei o livro cansativo e enfadonho. Contudo, os anos só alimentaram o anseio pela releitura, principalmente porque minhas incursões posteriores ao universo de Saramago mostraram que, na verdade, o problema não estava no escritor, mas na precariedade deste leitor que vos escreve.

Esta distopia de José Saramago nos remete à uma sociedade vitimada por uma pandemia de cegueira aterradora e comovente, na qual o leitor será transportado para uma experiência imaginativa única, onde a literatura cruel e sábia nos obriga a parar, fechar os olhos e ver..., com o perdão da ironia.

Na trama não teremos um arco principal, propriamente, embora o desenvolvimento narrativo careça muito de uma personagem que misteriosamente não perdeu a visão, optando em acompanhar o marido cego, quando este é encaminhado para uma espécie de “campo de concentração” para os primeiros infectados, pois o governo, não sabendo lidar com a doença e sua transmissão, resolve confinar infectados, numa tentativa de isolar o contágio.

Logo a medida se mostra um fracasso e o mundo parece ter-se tomado pela “cegueira branca”, como previamente é chamada a doença. Ocorre então uma mudança de perspectiva; onde antes havia um grupo de cegos confinados, aguardando explicações científicas e cuidados por parte daqueles que ainda podiam ver, transformou-se num ambiente caótico, desprezível e miserável, onde o instinto de sobrevivência e avidez pela saciedade de necessidades básicas, faz com que seres humanos revelem comportamentos primitivos, como egoísmo, indiferença e truculência.

A catástrofe de Saramago expõe a vulnerabilidade do ser humano, na sua extrema dependência dos olhos, inclusive para realização de suas necessidades mais básicas, mas também uma gradativa animalização conforme o tempo de infecção avança, tornando as necessidades do corpo algo insuportável, beirando a loucura.

O cenário caótico muitas vezes nos faz interromper a leitura. A podridão, tanto no aspecto ambiental quanto comportamental dos cegos, por várias vezes nos deixa com asco. O autor faz uso do olhar da única personagem que ainda pode ver, embora não se trate de uma narrativa em primeira pessoa, ela é o arco central do desconforto, pois vivencia na pele aquela hecatombe, como se representasse o próprio leitor dentro desse universo mórbido. A personagem que vê, possui uma percepção despida de julgamento moral diante dos cegos com os quais convive; ela é o peso da sensibilidade que atiça o olhar do leitor para a miséria existencial daquele mundo.

Alguns críticos literários apontam esta obra para uma possível metáfora da cegueira moral do ser humano, cujos olhos turvos já não podem ver mais a brutalidade ao redor; o autor escancara nossa animalidade primitiva de crueldade, mas parece fazer um paralelo à possibilidade de já estarmos vivenciando essa cegueira coletiva em relação à maldade do mundo, mesmo nos dias de hoje, onde uma pandemia ainda não nos cegou literalmente.

ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA foi uma necessária releitura, de outro universo saramaguiano em que o ser humano é desnudado em seus mais asquerosos anseios, mas sempre sob a perspectiva de um contraponto, no caso aqui representado pela personagem que pode ver, de que o ser humano ainda não é uma causa perdida.

NOTA: 8,5

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