Havia uma rachadura enorme na aliança dele, circundando quase toda a dimensão do objeto. Era uma lacuna negra, disforme e aparentemente irreparável. O nome da esposa havia se apagado por conta do desgaste, assim como o brilho reluzente da superfície se perdeu. O marido estava em pé, no banheiro, segurando a aliança no centro da palma de sua mão, perguntando-se como foi que surgiu aquela rachadura.
– E depois o que
aconteceu? – perguntei ao paciente.
– Eu acordei. Meu coração
estava acelerado!
– O que sentiu no
instante em que acordou?
– Estava ofegante..., uma
porcaria de aperto no peito.
Mesmo ali, sentado na
minha frente, parecia que os sintomas estavam de volta. O paciente estava
inquieto, cruzava e descruzava as pernas, enxugava as mãos nas laterais da
calça jeans. Após repetir esses gestos inúmeras vezes, retirou os óculos e
apertou as pálpebras. Levantou, foi até o bebedouro e se serviu de um pouco de
água.
– Acha que foi um sinal,
doutor? – perguntou ele, entre um gole e outro, ao lado da mesa com a jarra de
plástico.
– Que tipo de sinal?
– Não sei..., talvez um
divórcio esteja se aproximando – sugeriu ele – pode ser que o universo esteja
me mandando um sinal para que eu perceba o quanto meu casamento já não faz mais
sentido.
– Acredita que o universo
se comunica com você?
– Bom, eu estou chamando
de universo, né... – ele retornou para o assento onde estava – mas também
podemos chamar de Deus.
– Você possui
religiosidade?
– Não muito. Cresci em
lar católico, minha mãe era bastante devota. Mas eu não sou muito ligado a
religião..., não é nada contra, entende? Acho que o trabalho me toma tempo
demais e acabei me afastando sem que notasse. Vez ou outra eu rezo, sabe...,
tipo, converso comigo mesmo, deitado na cama ou quando estou no chuveiro.
Entende? Conversar pode ser considerado uma forma de oração, né?
Aquele prolongamento em
tentar explicar o afastamento da religião certamente emana de alguma culpa
interna causada pelo receio de decepcionar a mãe que ele alega ser muito
religiosa. Como já havia revelado em sessões passadas que a mãe faleceu há
alguns anos, suponho que se trate de um temor em estar, de algum modo, sendo censurado
pela memória dela. Ao se afastar da igreja, seu inconsciente o fez crer que ela
o observa e faz julgamento. Por isso perguntei se ele tinha religiosidade em
vez de religião. É comum as pessoas confundirem, mas o conceito é completamente
diferente. Religiosidade é uma expressão individual de fé e espiritualidade;
enquanto religião é um sistema fechado de crença, ou seja, um modo específico
de se praticar a religiosidade.
– É claro! Minha maior
crença está no poder do diálogo, por isso me tornei terapeuta.
– Então eu devo me
divorciar?
– Essa não é uma decisão
que deve ser tomada por mim, tampouco se deve usar um sonho como base
fundamental. Eu apenas disse que acredito na força do diálogo – outra condição
muito comum é o paciente buscar confirmação do terapeuta para suas convicções.
Nessa hora é preciso muito cuidado, porque o paciente pode se tornar muito
sedutor na busca por validação – Veja bem: Freud acreditava que os sonhos são expressões
simbólicas de desejos reprimidos que, por conta de alguma censura, não foram
admitidos pela consciência. Desse modo, o conteúdo manifesto de um sonho é uma
versão distorcida do conteúdo latente.
– O que tudo isso quer
dizer, doutor?
– Significa que
geralmente o conteúdo de um sonho não é literal, e cada manifestação possui
especificidades de quem sonha. Pode ser que haja uma condensação, ou seja,
vários pensamentos ou emoções compactadas em um único elemento. Ideias
abstratas podem ser convertidas em imagens visuais, por meio de símbolos.
– Então o que o doutor
acha que meu sonho significa?
– Isso é você quem vai
ter que decifrar. A particularidade que acabei de expor também serve para
você..., o que o faz pensar que eu sou a melhor pessoa para investigar o seu
sonho?
– Ora, você é o
profissional nessa área – ele pareceu levemente contrariado – Pensei que fosse
sua especialidade.
– A especialidade de um
terapeuta é guiar o paciente através do seu autoconhecimento. Sou apenas um
facilitador, o criador de um caminho seguro para você explorar seus padrões de
comportamento..., mas definitivamente quem fará toda a travessia é você.
– Então por que raios
você rejeitou a minha hipótese do divórcio?
– Não rejeitei.
– Claro que rejeitou.
– Em nenhum momento eu
rejeitei ou validei sua hipótese. O que estou tentando é fazer você refletir
sobre o cenário do sonho e compor um paralelo com o contexto atual da sua vida.
– Meu inconsciente deve
estar tentando dizer que o casamento já era.
– Não seja precipitado em
fazer interpretações. Existem outras hipóteses cabíveis, algumas as quais ainda
desconhecemos. Pense nos sinais: quando acordou você disse que sentiu um aperto
no peito, certo?
– Sim, foi o que
aconteceu.
– Isso pode ser um sinal
de ansiedade, a mera hipótese de um divórcio deixou você ansioso.
Ele hesitou. Olhou para o
teto, massageou o pescoço e então o olhar desceu até tapete do consultório.
– Eu gosto da minha
esposa...
– Então por que acha que
haveriam manifestações no seu subconsciente tentando sabotar seu casamento?
Ele aquiesceu por mais algum
tempo. De repente, algo lhe ocorreu na mente e foi quase palpável. Arriscou
dizer alguma coisa, titubeou, voltou a tentar. Estava agora visivelmente
desconfortável.
– Acho que é o sexo,
doutor – sua voz ficou baixa, quase um sussurro. Certamente ele devia
considerar o tema difícil de abordar – faz meses que a gente não se procura
mais. Não rola nada, nenhum carinho! É como se houvéssemos nos tornado dois
amigos que dividem a mesma cama.
– Você já a procurou para
conversar sobre isso?
– Tentei uma vez..., ela
desconversou. Disse que estou exagerando.
– E o que você fez?
– Ora, o que eu poderia
fazer? Deixei esse assunto de lado, afinal, ela não parecia nem um pouco
preocupada.
– Talvez você deva
abordar o assunto novamente...
– A rotina nos distanciou
– ele me interrompeu – depois que tivemos nossa filha a situação piorou. Nem
nos falamos direito no quarto, a cama parece ter quilômetros de largura, nem me
lembro mais de como é a pele dela... Acha que pode ter alguma relação com esse
desânimo constante?
– Não podemos descartar a
hipótese. Sua falta de sentido pode influenciar a perda de libido, uma vez que
a energia vital e nossa satisfação geral estão diretamente ligadas ao desejo
sexual.
– Sinto falta dela,
doutor.
– Acha que seu casamento
merece sua persistência?
– É claro que sim!
– Então converse de novo
com ela. Conversas difíceis são necessárias para que se desenvolva a relação. Pode
ser que precise mudar o modo de trazer esse assunto à tona. Talvez durante um
vinho após o jantar ou leve-a pra fazer uma caminhada, algum local tranquilo em
que vocês dois possam ter foco total na conversa. Nada de filhos por perto ou
distrações desse tipo, consegue fazer isso?
– Acho que sim – a resposta saiu meio
hesitante, mas acho que ideias começaram a saltar na mente dele.
– E pelo amor de Deus,
seja delicado.
Ele me olhou como se eu o
houvesse ofendido.
– Diga o que pensa, mas evite criticar – segui orientando antes que ele começasse a reclamar – também não faça julgamentos, deixe que ela diga o que a incomoda, o que pensa sobre o distanciamento de vocês.
Estudos mostram que um maior senso de propósito na vida está diretamente associado a maior satisfação com atividades íntimas, independentemente de outros fatores. A falta de sentido pode afetar negativamente o bem-estar emocional e a autoestima, o que, por sua vez, pode diminuir o desejo sexual.
**continua**

achei por acaso o seu blog e gostei!
ResponderExcluirSaudações, Giovana! Seja sempre muito bem vinda a este cantinho de literatura 😊
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