sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

RESENHA DE LIVRO – CORPOS ELÉTRICOS


Por ser uma pessoa que lê demais, eu tenho o pretensioso hábito de achar que vou adivinhar o rumo de uma trama, já no seu comecinho. Foi essa a impressão que fiquei ao iniciar a leitura desse fabuloso CORPOS ELÉTRICOS: homem é atraído pela beleza exótica e aparência sôfrega de uma mulher dominicana a qual ele se depara dentro do metrô. Este acaso aproxima as duas existências discrepantes; de um lado o executivo bem sucedido, e do outro a imigrante pobre e cheia de problemas. Portanto, quando me deparei com esta temática tão desgastada eu achei ter pescado com precisão o que este livro queria contar.

Enganei-me completamente. O autor Colin Harrison (o cara é o marido de uma autora que gosto demais, a extraordinária Kathleen Harrison) logo nos tira do senso comum, para nos mergulhar numa narrativa que, de modo tangível, nos remete às duras incertezas contidas no ato de se inserir numa vida completamente desconhecida.

A diversidade de mundos sociais é mostrada aqui de forma bem construída e sem a intenção de tomar algum partido. CORPOS ELÉTRICOS é um livro que inicialmente parece dar a impressão de que estamos mergulhando numa espécie de 50 Tons de Cinza. No entanto, o autor sabe fugir desse caminho tolo e previsível. Colin Harrison prefere focar na problemática de um homem bem sucedido, porém, solitário, querendo recuperar perdas passadas e que ainda precisa encarar a turbulência desgastante de grandes fusões que estão para acontecer dentro da milionária companhia em que trabalha. Tudo o que ele menos precisa neste momento é se envolver com uma mulher cuja existência soa perigosamente incerta... E num habitual trajeto de metro, eles se esbarram.

A trama é permeada de reviravoltas, que acontecem de modo lento porque o autor é um pouco prolixo, algo que incomodaria caso a habilidade narrativa lhe escapasse. Seu personagem principal, Jack Whitman é um homem desacreditado e totalmente entediado com sua vida, e ele faz de seu trabalho uma espécie de válvula de escape existencial, canalizando todos os seus esforços na profissão como se isso pudesse afastá-lo do passado trágico.

A moça do metrô, Dolores Salcines é uma hecatombe humana; mulher cujo caos está descrito em seus próprios gestos, ela é uma existência sem perspectiva e parece lutar para fugir de algo. A construção psicológica entre os dois personagens é brilhantemente evolutiva, começa de modo arisco, pouco à vontade, e vai se transformando em algo íntimo, sem bases, mas cheio de expectativas, principalmente por parte dele, situação que inevitavelmente o faz entrar em choque com o passado misterioso da mulher.

A narrativa é intimista, porém não procura tomar partido ou induzir o leitor. Ela simplesmente vai desenrolando a história. Vomita situações na cara do leitor e apenas segue com sua linha ágil e intensa. Colin Harrison nos coloca de tal maneira na pele de Jack Whitman, que vez ou outra um nó de angústia se formou em minha garganta, assim como segurei para não chorar em duas situações. E o final, embora nada previsível, é de uma crueza que quase incômoda, como se o livro estivesse apenas terminando mais um capítulo.

CORPOS ELÉTRICOS é uma obra singular; um delicioso achado que fiz neste 2018 que se encerra. É um trabalho assombrosamente bem escrito, imprevisível e sensacionalmente sedutor.

NOTA: 8,9

quinta-feira, 27 de dezembro de 2018

A ENCRENCA EM SETE PARÁGRAFOS – VELHICE


Finitude, decrepitude, vetustez, ancianidade, longevidade... Talvez o título dessa reflexão tornar-se-ia um tanto politicamente correto, caso eu fizesse uso de um destes termos higienizados. Mas creio que nenhum deles consegue alcançar com a mesma precisão aquilo que o substantivo “velhice” suscita em nossas mente, após o ouvirmos ou lermos.

De maneira quase que inevitável nós repudiamos a velhice como se fosse um mal inescapável; uma punição dada a todo ser que achou que seria esquecido em algum canto pelo tempo. No entanto, eu nunca ouvi falar de alguém que ansiasse pela morte antes de ficar velho. Ninguém quer desembarcar desse mundo sem antes passar pela terceira idade, como se a longevidade fosse uma espécie de atestado de excelência; status de merecimento alcançado apenas por aqueles que superaram as muitas mazelas existenciais.

Velhice implica perda de capacidade motora, debilidade física e, principalmente, queda elevada daquilo que antes eram atributos estéticos. Mas a velhice também é lugar de discernimento, a idade onde há elevação da humildade, a perda considerável da ingenuidade e muitas vezes um ganho enorme na capacidade de fazer melhores escolhas... Portanto, tornar-se velho não é melhor ou pior do que as demais fases da vida. Ser velho é apenas mais uma fase da existência, que igualmente a outros estágios, possui suas vantagens e desvantagens.

Acho ótima a metáfora usada pelo historiador Leandro Karnal em um de seus excelentes Café Filosóficos, quando ele diz que estar num corpo envelhecido é como se tornar um excelente motorista de posse de um carro ultrapassado; agora que a mente adquiriu discernimento para saber o que fazer, não temos mais um corpo vigoroso que corresponda com a noção de ideal. O motorista (a mente) deixou de ser jovem e inconsequente, mas o carro (o corpo) agora é frágil e cheio de limitações. Simplesmente porque a verdade inegável é que não dá para se aprender a viver, para depois viver. Experiência se adquire em conformidade com o movimento... Mas se a velhice não é nada mais do que o último estágio banal de uma vida, porque há tantas pessoas que a temem como se fosse um agouro inevitável?

Talvez porque ao pensarmos na velhice sob a égide da vaidade, cresce dentro de nós o medo de perdermos tudo o que na juventude nos era considerado virtude: beleza física, desempenho sexual, disponibilidade e vigor natural. E embora possa ser facilmente identificado diversos atributos alcançáveis em seu ápice somente na finitude, nenhum deles parece tão atraentes quanto às características da preciosa mocidade.

Ou ainda pior do que o ego pela eterna jovialidade, talvez a velhice corresponda a fase em que o ser humano mais tema por conta de uma fatalidade: a morte. É por termos tanto medo de morrer que talvez a terceira idade nos pareça tão ameaçadora; sabermos que temos menos tempo pela frente do que tempo vivido pode ser uma constatação extremamente macabra.

Na antiguidade os velhos eram postos na condição de sábios e conselheiros da comunidade, sendo as observações destes velhos portadores de vasta experiência, a possibilidade de aumentar os acertos na hora de se tomar alguma decisão. Contudo, a juventude de nosso tempo, de posse da atual e notável tecnologia, é detentora de qualquer informação ao alcance de um clique... Mas como dizia o sábio filósofo Kant: “Informações servem apenas para ser refutadas”. Ou seja, sabedoria é saber o que se faz com as informações que adquirimos. E pode ser que somente nesta tão temerosa condição da velhice é que alcançaremos tal preciosidade; a sensibilidade intelectiva para discernir e transformar dados em qualidade de vida.

sexta-feira, 21 de dezembro de 2018

RESENHA DE LIVRO – A PRINCESA VERMELHA


Quando a autora Sofka Zinovieff recebe como inesperada herança um diário de sua avó, ela inicia uma obcecada e reveladora busca pela identidade de sua prestigiosa ascendente. Poder-se-ia imaginar que se trata de mais uma empreitada biográfica sobre extraordinários e corajosos indivíduos que viveram na caótica Europa do século XX, semelhante a tantas outras que permeiam o universo literário. E embora a premissa seja a de contar a história de sua avó, aqui a autora optou por uma narrativa mais documental.

Nesta decente obra Sofka Zinovieff, cujo nome é o mesmo da avó, percorre por um delicado estilo narrativo de contar toda sua experiência enquanto seguia os passos da ilustre ancestral, o que escapa um pouco do teor linear das biografias. Sofka visita pessoas, lugares e memórias e discorre sobre os diálogos trocados, as contradições com o diário que recebeu; relata os pontos importantes do passado de sua linhagem; absorve, de modo imparcial, as distintas opiniões adquiridas ao longo de toda a empreitada.

E justamente a imparcialidade é o ponto forte dessa autora. Ela não altera o que lhe foi relatado, mesmo quando tais explanações entram em contradição com suas teorias; Sofka passa o tempo inteiro fazendo analogias com as escrituras do diário, comparando-as com o testemunho das pessoas íntimas daquele tempo; entra em embate consigo mesma e ora chega a querer desacreditar algum testemunho, digamos, menos decoroso, mas no máximo cogita por alguma hipótese contraditória... Ela sempre reproduz o que viu e o que está no diário.

Outro aspecto que deu um charme a mais ao livro foram alguns aforismos espalhados ao longo de toda a obra; frases que a avó retirava dos livros que lia ou que ela simplesmente gostava. É muito agradável encontrar breves sentenças de teor filosóficas que ajudam a deixar a leitura menos maçante, principalmente porque aqui se trata de um trabalho que se assemelha demais a uma biografia.

Nascida na nobreza de São Petersburgo de 1907, Sofka (a avó) foi uma mulher que teve sua vida completamente transformada com a revolução comunista, depois viveu os tempos de horror da segunda guerra e da guerra fria. Sua família parece sustentar uma linhagem de gente notória pela coragem e determinação. O livro começa exatamente ajudando o leitor a compreender esse fato: os pais de Sofka, que também tiveram uma vida fascinante e cheia de altos e baixos, representam o passado que explica a mulher ousada e inteligente que escreveu o diário, o qual foi dado à neta que passa a o seguir em tempos distintos.

É um livro asseado e honesto, que consegue manter um teor narrativo bem menos entediante do que costuma acontecer com biografias. Achei um pouco extenso, mas perante tantos acontecimentos pertinentes, não sei se a neta autora conseguiria encurtar a obra. Vale a pena pra quem curte biografias e estilos documentais. Também aos interessados em explorar o início da revolução comunista através de um ângulo, digamos, mais factual.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

RESENHA DE LIVRO – UM SOPRO DE VIDA


Em minha humilde e leiga opinião, Clarice Lispector é simplesmente a melhor autora da língua portuguesa que conheço. Seu teor existencialista submerge o leitor em profundidades reflexivas de forma quase que inalterável; Clarice é trajeto que deve ser percorrido novamente, pois o reencontro é sempre uma nova aprendizagem. Pelo menos é o que acontece comigo em quase todas as obras que li e reli.

Clarice é leitura que não envelhece; que não segue direção específica, que escapa do mero vislumbre narrativo tradicional para mergulhar nas agruras introspectivas do ser humano... Sem jamais fazer julgamentos ou tomar partidos. Gesto sem fórmulas. Apenas o ato de fazer refletir, ela é autora que dedicou-se a transitar através do intricado e misterioso íntimo humano.

Sua escrita não possui a pretensão de objetividade. De fato, a parte mais sublime de Clarice Lispector é seu próprio poder de submeter-nos à introspecção.

Nunca antes eu havia resenhado algum romance da mestra e posso dar duas razões pelas quais jamais me atrevi a explanar uma de suas obras: primeiro porque Clarice é um fenômeno de nossa literatura. E como tal, seus livros já foram incansavelmente resenhados por gente muito mais habilidosa do que eu. Em segundo lugar, sempre que eu termino de ler um de seus trabalhos, vejo-me com a sensação de que ainda ficaram pedaços esquecidos ao longo da leitura. Como se o livro ainda tivesse algo para me dizer... E quase sempre a releitura só comprova esta suspeita: Clarice é mesmo uma incursão inesgotável.

Isso leva a uma questão pertinente: por que então resolvi resenhar este nada menos que magnífico UM SOPRO DE VIDA?

Talvez pelo instante em que me encontro e o fluxo intenso de consciência despertado em meu ser, fez-me querer, de algum modo, ver ao menos este livro por mim resenhado. No entanto, acho que a principal razão seja o fato de que UM SOPRO DE VIDA foi a última obra escrita por Clarice e publicado apenas postumamente. E hoje, dia dez de dezembro, é o aniversário da autora. Então quis falar um pouco desta obra que, de fato, deixou-me com a sensação de que era Clarice, ela própria, externando-se a cada página que eu virava.

A trama é um embate introspectivo entre criador e criatura. O autor-narrador constrói uma personagem, Ângela Pralini, e com ela discorre, ao longo de toda a obra, diálogos apreensivos de auto reconhecimento, com sofisticadas notas de poesia em prosa. Os dois sustentam colóquios densos, profundos e irrequietos. Ora soam como aforismos, fragmentos isolados. Noutras situações parecem entraves tomados por uma filosofia existencial quase religiosa.

A interação diz muito em poucas palavras. O intuito de Clarice Lispector não é seguir linearidades, mas traçar um diálogo de consciências individuais que insere matéria e alma em plena sintonia... Provocando um incômodo profundo.

UM SOPRO DE VIDA é obra genial que responde à necessidade de se colocar tudo em questão sem repouso admissível; resgatar o leitor de seu horizonte conhecido para então inseri-lo num espaço imediato de desconforto e desafio de si mesmo... Através de sua literatura, Clarice coloca em risco o lugar comum do pensar. E talvez por isso tanta gente desconheça ou não se interesse por lê-la.

E se você ainda não é um caminhante do universo clariciano, vai aqui o meu único conselho: permita-se, humilde e despudoradamente. Exatamente como ela fez ao deixar seu legado literário:

“Tudo o que aqui escrevo é forjado no meu silêncio e na penumbra. Vejo pouco, ouço quase nada. Mergulho enfim em mim até o nascedouro do espírito que me habita. Minha nascente é obscura. Estou escrevendo porque não sei o que fazer de mim. Quer dizer: não sei o que fazer com meu espírito. O corpo informa muito”. (Um Sopro de Vida – pag. 17).

Feliz aniversário, querida Clarice!!